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Ler Júlio Dinis, sempre e agora

Dia 14 de novembro celebramos o nosso Patrono Júlio Dinis.

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Júlio Dinis. Fonte: Público

Uma Família Inglesa, 1868

“No entretanto Manuel Quintino prosseguia naquela marcha rápida,
desordenada, como se desejasse fazer desaparecer de súbito a distância, que
inda o separava da filha, e ia murmurando :

– Cecília… pobre filha!… Ó Nossa Senhora! que desgraça! que desgraça!
para que saí eu?… Não pode ser… Mas para me virem assim chamar… Quem
sabe se… Grande perigo! grande perigo, por certo! Virgem Santa! E este
caminho é tão longo!… E ela morta talvez por me ver chegar… Ó filha, filha…
E as lágrimas caíam-lhe em fio pelas faces.
O atordoamento de cabeça aumentava; a energia muscular, que a nova
recebida momentaneamente lhe dera, cedia de novo lugar ao mesmo
desfalecer que, antes, lhe vergava os membros. O pobre velho aterrava-se ao
perceber isto.

– Oh! dai-me forças, Senhor, dai-me forças para chegar depressa! Por
misericórdia! – dizia ele, tremendo. – A minha pobre filha!…
E os ouvidos zuniam-lhe cada vez mais; diante dos olhos, passavam-lhe, de
quando em quando, faíscas, manchas avermelhadas, nuvens de sangue; ouviu o
bater das fontes e das carótidas; furtava-se-lhe o chão debaixo dos pés; andava
e não se sentia andar; já não tinha poder de regular os movimentos, que se
sucediam sem a coordenação regular.
Uns homens, que passaram por ele, pararam a examiná-lo, e Manuel Quintino ouviu-lhes ainda dizer:

– Olha como vai aquela alminha! há de custar-lhe a dar com a porta da
casa.
Estas palavras afligiram ainda mais este pobre pai, já tão aflito.

(…)

Pareceu ganhar vigor por um pouco. Prosseguiu, mas com andar mais
tardo e vacilante. Cedo porém voltaram as ameaças do mal. Um entranhado
terror apoderou-se-lhe do coração, uma como misteriosa consciência do
próximo perigo.

As luzes da iluminação pública apareciam-lhe coloridas de vermelho. A
perturbação de vista aumentou; tudo girava em volta dele; os objetos
tornavam-se-lhe indistintos, afigurava-se-lhe que o terreno descia de repente, e
em uma descida tão rápida, que ele teve de parar para não cair. Encostou-se à
ombreira de uma porta.
Ouviu a voz de alguém, que já nem viu, dizer-lhe:

– O senhor não está bom? Entre para descansar.

– Não – disse ele com certo desabrimento, como se aquele conselho lhe
desvanecesse cruelmente a ilusão, que fazia por conservar ainda.
E de novo tentou caminhar.
Estava próximo do cemitério público, chamado do Repouso; deu mais
alguns passos.
Os mesmos sintomas atacaram-no de novo e com maior violência; a
vertigem foi completa; o chão pareceu faltar-lhe.
O bom do homem ainda pôde murmurar:

– Senhor!… Senhor!… por piedade!… pois hei de morrer aqui, sem ver
minha filha?!…
E caiu sobre uns bancos de pedra da alameda que está em frente do
cemitério.”

Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, capítulo XX

Em volta do leito da velha inglesa agrupavam-se todas as criadas da casa.

A pobre louca estrebuchava tão violentamente com os braços, que elas
mal conseguiam segurá-los.

Gesticulando com movimentos desordenados, soltando, entre gritos
agudos, palavras sem nexo, reunindo sílabas sem significação, descomposta e
com os cabelos em desordem, aquela desgraçada inspirava ao mesmo tempo
compaixão e terror.

Carlos aproximou-se do leito.

A velha Kate, vendo chegar uma nova figura junto de si, fitou nele um
olhar de expressão quase selvagem e, depois de algum tempo, pôs-se a rir e a
bater as palmas, com os modos infantis próprios daqueles estados de
imbecilidade.

– Olhem!… É ele!… é ele!… – dizia ao mesmo tempo, reparando cada vez
mais em Carlos. – Como veio para aqui?… Inda bem que vieste!… Agora sim!…
Quero ver agora quem me fará mal?… Vem cá, Dick, vem cá!… Agora sim!…

(…)

E tomou entre as suas mãos as mãos de Carlos.
Carlos sentiu que as dela começavam a arrefecer, dessa frialdade de gelo,
que excita em nós uma repulsa instintiva. Pela primeira vez lhe acudiu a ideia de
que podia ser aquela a última noite da pobre mulher.

Este pensamento fê-lo olhar para ela com mais atenção.

A escassa luz da lamparina ainda lhe permitiu conhecer a profunda
alteração de feições, que a pobre demente apresentava.

Deram nove e dez horas, e Carlos não saíra de junto da velha criada, que,
segura às mãos dele, estremecia ao menor movimento que sentisse, como
receando ser abandonada outra vez. Era tal o terror que mostrava de ficar só,
que tirou o ânimo a Carlos de tentar sequer deixá-la.

Assim as horas, que ele contava passar na companhia de Cecília, iam-lhe
correndo junto desta desgraçada octogenária, que com discursos incoerentes,
de mistura com risos e com prantos igualmente expressivos de desvario, o
conservou ali.

Pouco a pouco, principiou a tornar-se-lhe mais tardia e inintelegível a
pronúncia, mais sumida a voz, mais enevoado o olhar.

– Puseram-me estes ferros… murmurava ela, interrompendo-lhe a ânsia, a
cada instante, as palavras sem nexo que dizia – pensam que eu não sou…
Kate?… sou Kate, sou!… Foi à viúva do fogueiro… que eu dei… o vestido verde…
O fogueiro morreu… morreu no mar… É porque não são bons cristãos… Não foi
o galo que cantou, foi a coruja… Dizia que eram esmeraldas e… assim é que a
irmã se perdeu… O cedro chorava… era o pai dela…

Carlos, pousando-lhe a mão no pulso, mal o pôde já perceber… Tentou
sair, para chamar alguém que ministrasse os socorros precisos, mas a contração,
com que a velha o segurou, o estremecimento que lhe correu pelo corpo ao
sentir a tentativa de Carlos, obrigaram-no a desistir.

– E para quê? – pensava ele – ninguém já agora arrebatará esta presa à
morte. Pelo menos que seja tranquilo o passamento. Deixá-la morrer em paz.

E ficou, ficou ele só, único espetador daquela cena lúgubre, daquele
espetáculo pouco talhado para a sua juventude, para a sua índole e para os
vestidos de gala, com que, para bem outros fins, esmeradamente se preparara.

Era notável o contraste. A velha caiu em silêncio profundo, apenas cortado
de surdos gemidos.
Dava meia-noite, quando uma respiração mais ampla, após um profundo
repouso, fechou o círculo daquela longa existência.

Carlos conheceu que tinha diante de si um cadáver.

Depois de por algum tempo a encarar melancolicamente, desceu-lhe, com
piedoso respeito, as pálpebras sobre os olhos amortecidos.

Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, capítulo XXVII

“Cecília trabalhava, certa noite, em uma camisa de paninho para o pai.

– Que nome se dá a isso que está a fazer? – perguntou Carlos, curvando-se
sobre a costura.

– É uma camisa – respondeu Cecília sorrindo. – Pois nem conhece!?

– Que é uma camisa sei eu; não perguntava isso; mas… essa costura em
que está agora a trabalhar, como se chama?

– Isto? É um posponto!

– Ah! um posponto!… Um posponto é a mesma coisa que um sobre-cosido;
pois não é?
Cecília desatou a rir a esta pergunta.

– Não, senhor, não é. Nem tem nada uma coisa com outra.

– Não?! Pois olhe… parece, porque… posponto é… como quem diz: depois
do ponto, sobre-cosido, sobre ou depois de cosido, e portanto… depois do
ponto também.

– Será; mas… em todo o caso, são coisas diversas.

– Então que diferença fazem?

– Ora que curiosidade! Há de interessar-lhe muito agora conhecer essa
diferença.

(…)

– Ah! visto isso, o posponto… é um ponto também?

– Pois está claro. É um ponto que se dá assim. Ora repare.

E Cecília, acompanhando a palavra com a ação, principiou a trabalhar com
todo o vagar, ao passo que Carlos assistia à demonstração com a atenta
seriedade de um discípulo. Ainda que me parece que menos vezes lhe seguiam
os olhos os movimentos da agulha, do que se fixavam a admirar a perfeita
modelação e delicado colorido da mão que a movia.

– Repare – dizia Cecília – dá-se, suponhamos, o primeiro ponto; maior ou
menor, conforme a delicadeza da obra, já se sabe. Assim. Ora agora, a agulha
entra aqui mesmo pelo meio deste primeiro ponto… Vê?… E vai sair adiante, de maneira que este segundo ponto tenha o mesmo comprimento do primeiro.
Entende? A terceira vez entra por onde saiu a primeira, a quarta por onde saiu a
segunda… e assim por diante… Entende agora?

– Muito bem. E o sobre-cosido?

– Mas como lhe deu para querer saber destas coisas?”

Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, capítulo XXIII

“Cecília era um modelo da beleza portuguesa, e portuense talvez, nas suas
mais felizes realizações.

É costume entre nós, quando se quer exaltar, no conceito dos leitores, a
beleza de uma mulher, classificá-la entre as espanholas, entre as italianas, entre
as alemãs, e entre as inglesas, mas nunca entre as nossas compatriotas, que
sofrem, há muitos anos, com sublime resignação de mártires, esta velha e
flagrante injustiça.

Parece que o tipo nacional é indigno de referência, e que só quando dele
aberra e, por um capricho da natureza, reveste a feição estrangeira, é que uma
figura de mulher merece as fórmulas, mais ou menos sonoras e hiperbólicas, da
nossa admiração.

É vulgar ouvir-se dizer: – «Como é bela! Há naquele todo vaporoso certo ar
germânico!» – «Que mulher! Tem o salero de uma espanhola» – «Que
majestade! Que morbideza! É uma perfeita madonna italiana!» – «Que poética
gravidade! Dir-se-ia uma cândida lady.» O que porém se não ouve, pelo menos
o que eu ainda não ouvi, é: – «Que simpática rapariga! É uma portuguesa
perfeita!»

A causa disto é o sermos nós uma nação pequena e pouco à moda,
acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por
obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os
estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós.

Falta-nos certo uso de sociedade, que ensina cada qual a ocupar o seu
lugar. Quando não encarecemos exageradamente as coisas pátrias, à maneira
daquele sujeito que vimos num dos grupos da Praça, caímos no excesso oposto
e nem sequer falamos delas, como se nos corressem da origem.

Bem que pese à vaidade nacional, é forçoso o fazer aqui, em família, uma
confissão: – Nós temos o defeito daqueles provincianos que, nos círculos da
capital, sufocam envergonhados, como coisa de mau gosto, uns restos de amor
da terra, que ainda os punge, e deitam-se a exaltar, com afetação altamente
cómica, os prazeres e comoções da vida das grandes cidades, que ainda mal
gozaram e ainda mal saborearam; – falam dos teatros, dos bailes, da cantora da
moda, do escândalo do dia, sem se atreverem a dizer uma palavra pelo menos das árvores, das paisagens, das tradições, dos costumes locais, do conchego
doméstico da sua província, o que porventura os outros lhe escutariam com
mais vontade; e no fim de tudo ficam mais ridiculamente provincianos, do que
nunca.

Assim também os Portugueses, acanhados nos círculos da Europa, não
ousam conferir diplomas de excelência a coisa que lhes pertença;
envergonham-se de falar nas riquezas pátrias, enquanto abrem a boca, por
convenção, a tanta insignificância que, em todos os géneros, a vaidade
estrangeira apregoa como primores; levam o excesso da modéstia, se é só
modéstia isso, até recearem que as vistas dos estranhos averiguem do que lhes
vai por casa e agradecem, com efusões de sensibilidade, uma ou outra frase de
louvor, que, em momentos raros, eles lhes concedem.”

Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, capítulo XI

A Morgadinha dos Canaviais, 1868

“As crianças saudaram a nova com gritos de alegria, e saltos de causarem
inveja a um «clown» de circo.
D. Vitória zangou-se.

– Então que pouca-vergonha é essa? Parecem-me um bando de patetas?
Ora vamos! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter levado
para a quinta. Ó Senhor! esta praga de criados, que nunca há de fazer a sua
obrigação!
As crianças reprimiram um pouco mais as expansões de seus júbilos, mas
ainda ficaram cantando a meia voz, e em música de composição delas, o
seguinte:

– Vem o primo Ângelo! Vem o primo Ângelo! Ora viva, viva! Ora viva, olé!

– Pschiu! calai-vos! – bradou ainda D. Vitória, e voltando-se para
Madalena. – Mas então como se entende isso, Lena? Então o pai diz que vem…

– Nas vésperas do Natal.

(…)

– Uma perfeita ovação acolheu o projeto; as crianças levaram as suas
demonstrações de entusiasmo até o delírio, penduraram-se ao pescoço, à cinta,
ao avental da mãe, gritando todas a um tempo:

– Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia Doroteia, mande! E há de ficar
em casa, sim? Olhe e… arma-se o presepe… e… e… e havemos de cantar as
janeiras… Mande, mande, mamã, por as alminhas; ora mande…
D. Vitória fingia arrenegar-se com aquela pequenada e erguia o braço,
como para a fustigar asperamente, mas, contra sua vontade, rompia-lhe o riso
dos lábios.

– Saiam daqui! – exclamava ela, quando conseguia estar séria. – Saiam!…
Não ouvem?… Espera que eu vos falo… Ai não fazem caso? Ora esperem…
Mariana, já devias ter mais juízo… Então, Eduardo! Tu também? Não tem
vergonha! Um homem quase! Saiam daqui, estafermos!”

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, capítulo V

“Parando à porta da cozinha, o Herodes (às vezes lhe chamaremos assim,
cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguém, que mais
que tudo trazia na memória – a filha. – Esta, pela sua parte, mal o reconheceu,
correu a lançar-se-lhe nos braços.
O pai pegou nela, como se fosse um pena, levantou-a à altura dos lábios e
poisou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda palpitantes de todo
aquele intenso amor paternal.

– Ah! – exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acabava
de satisfazer uma intensa necessidade do coração. – Isto consola que nem o
copo de água que a gente, em dias de calma, pede à borda da estrada, quando
se leva a boca seca e queimada da poeira! Mais do que isso me sabem estes
dois beijos que te dou, pequena. Que querem?… Ó Sr. Augusto! também por
cá?

(…)

– Compadre! – atalhou escandalizada a Sr. Catarina – compadre! É essa a
educação que dá à sua filha? São coisas que se digam diante de uma criança de
doze anos? Ande lá, ande lá… Ora Deus queira que lhe não encontre ainda o
pago. Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse ensinar, a doutrina; que
é mesmo uma vergonha o pouco que sabe dela.

– Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda não deixa passar
pobre à porta, a quem não dê esmola; criança, que não afague; velho ou velha,
que não corteje; reza todas as manhãs a oração, que a mãe lhe ensinou, o
Padre-Nosso e a Ave-Maria, onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus; de dia
trabalha, como filha de pobre que é, e mulher de casa que há de ser… O Senhor
me perdoe, se mais é preciso ainda, que mais não sei eu ensinar-lhe!

– Não tenha soberbas, compadre, não tenha soberbas! E cautela com o
mimo que dá à pequena, que é o que perde muitas almas…

– Que mimo, que mimo? Logo eu com este génio de repentes é que hei de
dar mimo a esta pobre criança, que nem os da mãe conheceu!

– Ora diga, compadre, acha que é muito bem feito, da sua parte, deixar
andar a rapariga com esses cabelos soltos? Não sabe que o demónio… cruzes!
arma com eles laços às almas das criaturas?

– Fracas prisões são as do diabo, se as forja só de cabelos!… Então, por
causa das tentações é que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem coisas! É
teima velha! Eu já lhe disse, comadre: Deus, que deu à pequena esses cabelos
tão bonitos, é porque lhos quis dar. Se quiser, que lhos tire; eu é que não.

– Deus cerca-nos de tentações para que nós as vençamos.

– Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não cortaria assim, se
os tivesse como os da minha Ermelinda, hem? Cortar os cabelos à minha filha,
eu?! fazer daquela cabeça de querubim uma dessas cabeças tosquiadas, que
por aí andam!

– Talvez ainda se arrependa!

– Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem. Se
pintam anjos, como ao minha pequena, e não figuras… respeitáveis, como a da
comadre, ora então!

(…)

É sempre funesta a influência que exercem sobre a infância os caracteres
como os da beata.”

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, capítulo VII

“- Há dez anos saí eu daqui, tio Vicente. Não se lembra? Era então uma
pobre criança da aldeia, educada entre os braços de minha mãe, e conhecendo,
uma por uma, as árvores destes sítios e mais nada. Saí daqui e fui para Lisboa.
Não imagina as fortes impressões que recebi na noite que ali cheguei. Nunca a
história mais maravilhosa de fadas e de encantamentos que ouvia, quando era
pequeno, nunca me feriu a imaginação assim! Tudo era novo para os meus
sentidos. O rumor, as luzes, os palácios, os edifícios, os carros produziam-me
quase uma vertigem; sentia-me vacilar. Achei-me, nem sei bem como, de tão
atordoado que ia, numa casa onde estava o conselheiro, e em que se reunia,
naquela noite, uma companhia numerosa de homens, de senhoras e de
crianças, muitas da mesma idade que eu e que formavam uma assembleia à
parte. A sala era magnífica; muitas luzes, muitos espelhos, muitas flores, móveis
doirados, tapetes, quadros, cristais, e, para acabar de me confundir, o piano,
objeto novo para mim, e que eu não me fartava de admirar. Tudo isto me
peturbava como imagina, e por força me havia de dar uns ares de estupefacto.
O conselheiro recebeu-me com afeto; deu explicações às pessoas presentes a
respeito da minha vinda, e deixou-me entregue às crianças. Aí fiquei eu, bisonho
rapaz da aldeia, com a minha jaqueta mal talhada, o meu olhar tímido, os meus
modos acanhados, no meio de uma turba de crianças elegantes, que se me
figuravam de uma essência superior à minha. As crianças são desapiedadas,
quando assim em companhia. Cedo percebi que estava sendo o alvo da
zombaria delas; riam ao princípio com disfarce e falavam-se ao ouvido, olhando-
me de relance; redobravam as risadas e transmitiam reflexões a meu respeito,
cujo sentido julguei adivinhar. Depois dobrou a ousadia nelas, dirigiram-me
ditos, gracejos, cada vez menos disfarçados; formaram grupos em volta de mim;
se eu falava, respondiam-me rindo. Então apoderou-se de mim um profundo
desalento, comprimiu-se-me o coração de tristeza. Lembrei-me, com saudades,
das árvores da minha aldeia, do meu pobre quarto, de minha mãe; e achei-me
ali tão só, tão sem conforto nem amizades, que as lágrimas me vieram ferventes
aos olhos. Ainda hoje não hesito em dizê-lo, foi aquele um dos mais amargos
momentos da minha vida. Nós, quando adultos, esquecemos facilmente os
martírios da infância, quando nesta idade uma sensibilidade exagerada tão
dolorosos os faz.”

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, capítulo XV

“A aldeia vira-se invadida por um bando de seres desconhecidos, que viera
alterar a perene serenidade de ânimo de uma população habituada a
considerar, como ocorrências de máximo interesse, a reforma dos muros ou das
cancelas de qualquer proprietário da localidade.

A coorte de engenheiros, condutores, apontadores, cantoneiros, e mais
operários vinha, com seus hábitos e costumes novos, fazer tantas ou maiores
mudanças na vida social da aldeia do que nas condições físicas dela as
bandeirolas, os niveladores, as enxadas, as pás, alviões, picaretas, carros de mão
e padiolas, de que era armada essa coorte.
(…)

Na baixa, em que ficava a habitação do herbanário, ia uma azáfama
extraordinária.

O machado demolidor e a alavanca principiaram a sua obra de destruição:
desconjuntavam-se as pedras dos muros, desfazia-se em pó a argamassa
secular, caíam a golpes de machado as vigas dos tetos e os troncos das árvores,
alastrava-se de tijolo e caliça a verdura dos tabuleiros, e cedo, de toda aquela
vivenda tão amena e virente, só restavam ruínas.”

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, capítulo XXI

“O Zé P’reira prosseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o jogo das
baquetas; começava a ganhá-lo o vapor do entusiasmo.

Principiou a acudir o povo para junto do artista.

Este tomara-se já do «raptus», do frenesi musical. Já não eram só as mãos,
eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que rufavam. De olhos
fechados, dentes ferrados nos lábios, ventas ofegantes, contraídos quase
titanicamente os músculos do pescoço, a vergá-los para trás, o Zé P’reira
parecia endemoninhado. Não via, não ouvia, não sentia, não tinha consciência
de si, nem dos seus atos; todo ele era fogo, delírio, convulsão, febre, loucura.
Parecia que poderosas correntes elétricas se transmitiam do tambor ao cérebro,
e do cérebro ao tambor, desafiando aqueles movimentos coreicos, aqueles
grunhidos surdos, aquelas visagens extravagantes, aquelas contrações gerais,
que o torciam, desconjuntavam e desfiguravam.

Vencera-o completamente a febre; sangue, nervos, músculos, cérebro,
tudo era domínio seu; congestionado, alucinado, louco, rufou, rufou, rufou com
desepero, rufou até as baquetas se não avistarem de rápidas que se moviam;
rufou até o ouvido quase não perceber a descontinuidade dos sons; rufou
finalmente até cair por terra exausto, no colapso que sucede às convulsões do
espasmo. Se tinha de ser aquele o declinar de uma glória, todos os astros lhe
invejariam tão esplenderoso crepúsculo.

O povo inteiro aplaudia o artista.

E quando voltaram a si do êxtase em que ele os tivera, acharam já
fechadas as portas da sacristia e nem vestígios da família do Mosteiro. O povo
dispersou pacificamente.”

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, capítulo XIX

Os Fidalgos da Casa Mourisca, 1871

“As entrevistas de Jorge e do fazendeiro tinham sempre lugar de noite,
como já dissemos.

Jorge saía de casa quando já todos dormiam menos Maurício, único que se
recolhia ainda mais tarde e que nem sequer sabia das surtidas do irmão.

Tomé da Póvoa esperava-o na Herdade, onde o rapaz entrava com o
mesmo mistério, e às vezes prolongavam-se até altas horas estes conciliábulos
económicos.

Neles, ambos aprendiam. Tomé abria a Jorge os tesouros da sua muita
experiência, e esclarecia-o com os conselhos ditados por um são juízo e uma
natural lucidez. Jorge, que já enriquecera a sua biblioteca de novos livros e de
periódicos de agricultura e de economia rural, falava a Tomé dos progressos e
melhoramentos agrícolas dos países estrangeiros, e eram para ver a atenção e o
entusiasmo com que o lavrador o escutava. Com o ânimo arrojado e despido do
cego e supersticioso amor pelas práticas velhas, Tomé tomava nota de muitas
dessas inovações, para as experimentar, praticando-as nas suas próprias terras.
Que belos e grandiosos projetos de futura realização não planeavam eles,
inspirados das maravilhas obtidas pela agricultura nos países mais adiantados,
onde é exercida por homens inteligentes e instruídos.”

Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, capítulo VII